domingo, abril 25, 2010

Eis aí um trabalho que fiz pra faculdade (e tomei no cu com ele, tirei 18 em 25 e precisava de mais. Enfim):



Em um espaço de tempo de pouco mais de sessenta segundos de uma quarta-feira, 30 de março de 2010, a região central de Belo Horizonte foi tomada por uma chuva violenta. Todos os transeuntes que se encontravam na tradicional avenida Afonso Pena, sejam os que não faziam nada de mais ou os que trabalhavam duro, todoa eles foram pegos pelo súbito pé d’água. As marquises de lojas e edifícios residenciais se tornam pontos de disputas, algumas delas mais ríspidas e regadas a um palavreado pouco ortodoxo. Situado no meio da avenida e indiferente ao clima de rebuliço que se instalou com a intempérie, o Cine Humberto Mauro vai bem, obrigado.

O cinema se localiza no Palácio das Artes, que é, provavelmente, o mais importante complexo cultural de Belo Horizonte. Inaugurado em 1971, ele comporta teatros, bibliotecas e galerias de arte, além do próprio Cine. Ou seja, o número 1537 da avenida Afonso Pena, com sua escadaria de concreto idealizada pelo onipresente arquiteto Oscar Niemeyer, é o pesadelo de todos os filisteus, pouco afeitos às artes.

O Palácio é mantido pela Fundação Clóvis Salgado, órgão que integra o Sistema Estadual de Cultura de Minas Gerais. Inicialmente chamada de Fundação Palácio das Artes, a mantenedora mudou o nome em 1978, com a morte do proeminente político Clóvis Salgado. Ele foi um dos maiores incentivadores das iniciativas artísticas no estado e também o principal angariador de recursos financeiros destinados à existência e pleno funcionamento do complexo.

O Cine Humberto Mauro também veio ao mundo em 1978 e é o lar por excelência de cinéfilos experimentados. Não só deles, mas de qualquer um que se interesse em mergulhar fundo na sétima arte. Ele se dedica à exibição de produções cinematográficas alternativas, pouco vistas. A mostra atualmente em cartaz é um apanhado do cineasta e quadrinhista chileno Alejandro Jodorowsky (diretor de “Santa Sangre” e “El Topo”), a ser exibida até o 7 de abril. Claudia Dias, designer de moda e Maurício Vaz, programadores, estão no Café do Palácio, aguardando a primeira exibição. “Viemos para ver A Montanha Sagrada”, diz ela.

Maurício acrescenta um dado importante: “Sou fã de diretores americanos obscuros, como Nick Zedd, Richard Kern e Bill Zebub. Os trabalhos desses caras dificilmente serão lançados no Brasil e a importação é um absurdo de tão cara. Logo, os downloads vieram muito a calhar”. Essa é uma das idiossincracias dos frequentadores do Humberto Mauro e de outras salas similares, espalhadas pelo país. Os seus adeptos não dependem apenas de locadoras e circuitos convencionais de cinema para satisfazer o seu vício pela arte visual. Muitos deles se empenham mesmo em encontrar fóruns virtuais estrangeiros, onde podem “baixar” direto da internet alguns trabalhos que dificilmente chegariam às suas mãos de outro modo.

Maria Chiaretti, gerente de programação do Cine e fã invetereda do diretor francês Jacques Rivette e do cinema italiano setentista, concorda com Maurício: “Muitos dos nossos frequentadores mais assíduos já assistiram ao filme em algum lugar, seja em dvd ou baixaram em seus computadores. Mas a experiência de assistir a um filme de difícil acesso em uma tela grande é imprescindível”. Maria é a décima terceira programadora da história do cinema. Ela conta que o projeto nasceu bem menor do que hoje, sendo tocado por apenas alguns poucos fãs de cinema, que se reuniam em um espaço comum para ver filmes e discuti-los. As primeiras projeções eram em películas (materiais fotográficos utilizados para a projeção) de 16 mm - as atuais são de 35.

Dentre os muitos programadores, dois nomes são mais facilmente lembrados por ela em nossa conversa: Mônica Cerqueira e José Zuba Junior. A primeira é uma das mulheres mais importantes do cinema brasileiro. Além de comandar o Humberto Mauro por mais de 10 anos, ela participou da abertura de duas outras expressivas salas de Belo Horizonte, o Savassi Cineclube e o Usina Unibanco (“hoje extinto”, lamenta Mônica). Mônica foi a segunda programadora do Humberto, logo após de Wagner Correia Araújo, um dos mentores do Cine Humberto Mauro.

Já Zuba Junior foi o programador mais polêmico. Homossexual assumido, ele foi responsável por trazer para a sala diversos filmes com temáticas mais à parte de sua época no Cine. Ele tornou possível a exibição de diretores europeus clássicos (e gays) como o alemão Rainer Werner Fassbinder e os italianos Luchino Visconti e Pier Paolo Pasolini. Maria esclarece: “Não era só porque os filmes e os diretores eram explicitamente gays, não era tão panfletário assim. Antes de tudo, eram filmes muito, muito bons”.

A programadora também confirma a preferência por filmes alternativos ao concatenar as mostras: “procuramos filmes que não são encontrados tão facilmente, de diretores que muitas vezes passam desapercebidos à maioria dos fãs de cinema. Inclusive, uma da nossas mostras se chama ‘Passou Batido’, dedicada aos filmes recentes que não obtiveram bons números nas bilheterias mineiras”.

Além da Passou Batido, outras mostras regulares são a INDIE (Mostra de Cinema Mundial), o Festival Internacional de Curtas-Metragens de Belo Horizonte e o FELCO (Festival Latino-Americano da Classe Obrera), esse de temática mais politizada que os demais. Para o segundo semestre, “quando o dinheiro já saiu” , usando as próprias palavras de Maria Chiaretti, estão sendo agendadas visitas importantes. Ela confirma que o jornalista João Moreira Salles e o professor e teórico de cinema Ismail Xavier são nomes quase certos para a realização de palestras no espaço. Já a próxima mostra homenageará o realizador francês Maurice Pialat, autor de, entre outros, “Van Gogh” e “Aos Nossos Amores”.

Ao ser questionada sobre o cineasta que empresta o nome ao Cine, Chiaretti é enfática: “ele é um ícone. Inclusive, o primeiro filme a ser exibido aqui foi ‘A Noiva da Cidade, dirigido por Alex Vianny e com roteiro do Humberto. Nada mais justo que homenagear o maior cineasta mineiro”. Natural de Volta Grande, Humberto Mauro tem filmografia vasta, com treze longas-metragens e diversos curtas. Admirador do cinema americano clássico, de gente como D.W. Griffith e King Vidor, ele lançou seu primeiro filme em 1925, chamado Valadião, o Cratera. O mineiro é inspiração declarada de cânones do cinema nacional, como Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha.

Humberto Mauro é importante, sem dúvida. Foi homenageado em Cannes (Festival), teve filme com música do próprio Heitor Villa-Lobos, transitou com desenvoltura por longas, curtas, documentários. Um de seus filmes mais marcantes é “Thesouro Perdido”, de 1923, em que um mapa que supostamente indica a localização de um tesouro gera morte e desordem.

Mas, por fim, deixo que o próprio Humberto fale de sua sua arte: “Não sou literato. Sou poeta do cinema. E o cinema nada mais é do que cachoeira. Deve ter dinamismo, beleza, continuidade eterna”