domingo, setembro 19, 2010

Saiu no Estado de Minas. Reli para ver se ainda gostava. Acho que sim.


Argel e as minas

O competentíssimo escritor Albert Camus, aquele que disseminou a peste, havia alcançado toda a sua fama em Paris, mas pouca gente, quase nenhuma, sabia que ele era mesmo da Argélia, de cidade pequena e produto de relação excêntrica, que misturava França e Espanha e um pai que morreu numa dessas mil guerras que pululam dia após dia. Como Francisco Nonato, imigrante honesto, leitor devoto e flamenguista sensato, estava de recesso na repartição, decidiu esquecer Bordeaux e dar um pulinho rápido em Argel e respirar o ar que Camus, homem digníssimo, havia compartilhado um tempo antes. Bouteflika, o presidente, havia dito que aquelas bandas andavam perigosas, que a guerra civil tava bombeando terror nas veias, mas Chico não deu trela e se meteu pra dentro do avião assim que pode.

Chegando lá, decorre todo aquele processo de saudações, visitas, cigarros, cigarros e cigarros. Bares de gente desdentada, mas irreverente, um Marlboro atrás do outro, trazidos previamente da capital francesa, já que a Argélia sempre se sustentou sem vícios mundanos, muito obrigado. Francisco Nonato passou de passagem pela biblioteca pública, gingou ligeiramente com a capoeira entusiasmada que pipocava na esquina da rua grande e desviou de todas as saliências que ia encontrando pelo asfalto. Sabe como é, os franceses colonos haviam se mandado, mas as minas e as faíscas continuaram. O que Chico, mesmo com toda a cultura absorvida daqueles livros abençoados de segunda mão, não sabia, é que ele confundia os nomes, a nação das minas era outra, ali do lado, repleta de negrões que falavam português de nascença, também entendiam tudo do riscado que envolvia a capoeira, mas que residiam em uma vizinhança (bem) mais tempestuosa.

Parou ali em frente a uma escola de polícia, coisa fina, arquitetura arrojada, colírio pras vistas. Ia protegendo o sol do rosto, esses trópicos são mesmo de assar ossos, dizia ele. As crianças iam passando empurrando bolas, chutando daqui e ali, parecia até a terra do Corcovado, lugar maravilhoso e dono de um Cristo só pra eles, que ele havia prometido pôr um igual no Ceará, naquele seu desejo contido de voltar um dia pra terrinha com pujança de vereador. E nada das tais minas aparecerem, olha que coisa. Deve ser sorte!

Chico Nonato ri sozinho, de pé no meio da rua, atrapalhando a trave de pedra que demarcava o campo útil do futebol dos molequinhos. Ele havia esquecido como era aquele ar de terceiro mundo, pois se mandara do Brasil com o alvorecer da maturidade com a missão de engordar o crédito da família que ficou longe. Aquele cheiro de fumaça e sonho, que escapava de cada janela e se misturava com o monóxido dos automotivos, havia de repente, se juntado com os pensamentos do próprio Nonato e ele se permitiu um sorriso aberto e marcante, daqueles que reconhecem que a temporada pode estar ruim, mas a bonança é esperada.



Mais um cigarro depois, o apito anuncia o fogo, o fogo sobe, os gritos brotam daquele ar úmido, um estilhaço vem zunindo e parte a lente fortificada do óculo daquele cearense bucólico que se mandou ligeiro de Quiterianópolis querendo Paris, mas que se enrabichou por Bordeaux. É a guerra civil, guerra de gente comum com fome e o choro é livre, o céu acinzentou e não há mais silhueta de pé. O cigarro do Nonato enfim caiu e acertou uma mina, escondida ali no meio da trave imponente de pedra.